O que vem do AR outra vez

AR4

Nesta quarta edição do AR – Festival de Cinema Argentino, continuamos a defender que um festival de cinema é mais do que um festival de cinema. É, por um lado, um ponto de vista, por outro, um ponto de encontro. Sobretudo quando se trata de uma “festa” que celebra o olhar de cineastas de um determinado país sobre a realidade. O cinema de autor é a síntese deste mundo imperfeito e felizmente tosco, contado de forma independente e sem constrangimentos, onde nos encontramos todos. Ao longo destes quatro anos, temos acompanhado o crescimento e as pulsões do cinema de autor argentino contemporâneo, que se destaca como um dos mais desafiantes e coerentes do panorama cinematográfico Ibero Americano. Gostamos de pensar o AR como um festival que conta um conto e acrescenta-lhe um ponto… argentino.

Este ano realizamos um desejo antigo: aliarmo-nos à Cinemateca Portuguesa (um agradecimento especial ao João Rosas e ao Manuel Mozos) para homenagear um realizador que admiramos, um dos fundadores do Nuevo Cine Argentino nascido naquela malograda década de noventa: Martín Rejtman. O AR volta, assim, a bifurcar-se em duas secções complementares: uma retrospectiva na Cinemateca e a habitual secção Panorama no Cinema São Jorge.

Espera-nos uma edição cheia de acção. Isto porque, depois de a edição passada ter sido em parte dedicada à literatura adaptada ao cinema com a aliança às Bibliotecas de Lisboa e ao evento Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero Americana de Cultura, este ano o AR entrega-se completamente ao impulso dos protagonistas e o epicentro da programação é a acção. Neste caso, mais do que um género, é um movimento gerador de dramaturgias, percursor de ideias e definidor de personas.

A retrospectiva de Martín Rejtman que, graças ao apoio do IPDAL e da EGEAC, estará presente em Lisboa para apresentar os seus filmes e conversar com o público, é composta pelas suas seis longas-metragens, atravessadas por uma galeria de personagens que contemplam pouco e fazem muito. Este realizador, cuja singularidade autoral se destaca por mostrar o que o dia-a-dia encobre, propõe, através de uma engenharia edificada por sucessivas acções, atmosferas estranhas que se transformam em normalidade. E, aí mesmo, onde o maniqueísmo se teria instalado confortavelmente caso pudesse, impera uma ambiguidade muito mais brilhante e sedutora, uma proposta formal que ajudou a acabar com uma época de filmes faustosos, pouco iluminados e personagens miseráveis, naquele obsoleto panorama cinematográfico argentino do início dos anos noventa. O Nuevo Cine Argentino nasce a meio dessa década engendrado por várias vozes como a da Lucrécia Martel ou da Albertina Carri, paralelo ao surgimento de várias escolas de artes visuais e da promulgação de uma lei do cinema que apoiaria novos autores e uma geração heterodoxa criada no rescaldo da ditadura militar. Trata-se de uma geração ávida por implodir com os cânones de uma Argentina atravessada por uma forte política neo-liberal durante demasiados anos.

A aceitação, inclusão e a quase normalização da surpresa, são o material de trabalho de Rejtman que constrói, sobre estas bases, o seu universo. Por exemplo, o roubo de uma mota e a radiografia marginal da classe média em Rapado, o vigésimo sétimo aniversário e o desejo de mudar de vida em Sílvia Prieto, uma separação e uma sucessão de hiperligações em Los Guantes Mágicos, os ensaios de um baile e a devoção no seio da comunidade boliviana residente em Buenos Aires em Copacabana, a disrupção do ensino dramático como objecto de estudo em Entrenamiento Elemental para Actores ou, literalmente, alguém que dá Dois Disparos na cabeça e sobrevive. Todos os ambientes e desenlaces dramáticos provêm, numa primeira instância, das acções que levam a cabo os protagonistas. Uma poética que advém de uma acumulação que avança, como se tudo fosse lícito, dentro de uma lógica algo assombrada e descomposta mas sempre pontuada por um irresistível humor.

A secção Panorama é composta por cinco ficções, dois documentários e cinco curtas-metragens quase todas de 2017 e inéditas em Portugal. Uma múltipla perspectiva humanista centrada em infatigáveis personagens, todas elas  (per)seguidas de perto. Dois adolescentes de olhar maduro procuram, respectiva e desesperadamente, uma resposta, em Mochila de Plomo (Dario Mascambroni) e Invisible (Pablo Giordelli). Jovens adultos que vão lá longe ao desconhecido em busca do sentido que poderá ter a vida em El Auge del Humano (Eduardo Williams) ou outro que prefere uma arma na mão do que duas vidas a voar em Soldado (Manuel Abramovich). Seis mulheres reformadas dilatam o passar do tempo numa sala de cinema em Las Cinéphilas (María Álvarez) e um casal subtrai o sentido de rotina quando re-visita um clássico em La Vendedora de Fósforos (Alejo Moguillansky). Finalmente, um realizador instala-se n’ Una Ciudad de Provincia (Rodrigo Moreno) para coleccionar quotidianos e seguir cães até ao infinito.

Nas curtas, temos cinco tomadas de posição que se definem, cada uma, por uma singular geografia emocional: uma rapariga que entra numa casa que já não é sua em Antes de Irme (Mariana Sanguinetti); uma neta que propõe uma viagem ao passado em Fiora (Martina Juncadella e Martín Vilela); um irmão que superprotege a irmã em Nosotros Solos (Mateo Bendesky); ziguezagues dramáticos com Nova Iorque como pano de fundo em Dear Renzo (Francisco Lezama e Agostina Gálvez) e uma chamada de atenção que dá forma a uma animação em Ian (Abel Goldfarb).

Pensar sobre os dezoitos filmes que compõem a programação deste ano significa reconhecer, também, que não só as lentes estão focadas nas acções dos protagonistas, mas os olhares dos cineastas estão alinhados com o que estas representam, numa espécie de retaliação assertiva do presente que habitam. São retratos precisos e atrevidos que transitam por ordens sociais, procuras e periferias. Estamos, à margem do óbvio e dos géneros, perante uma programação profundamente humanista e inquieta. É nesta inquietude que vive o AR, onde o cinema argentino é, por quatro dias, o lugar onde cabem todos os espaços e tempos, essa tal chamada “festa do cinema” para a qual estão todos convidados.

Finalmente, queremos agradecer às instituições e organismos parceiros do AR e da VAIVEM e que nos têm permitido consolidar e crescer. Obrigada à EGEAC, à Embaixada da Argentina em Portugal, à Câmara Municipal de Lisboa, ao Cinema São Jorge. Obrigada ao IPDAL. Obrigada aos media partners e à super equipa de família e amigos. Obrigada à Cinemateca Portuguesa. Gracias Zenit, gracias INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales). Esperamos poder continuar a contar com todos e estar aqui novamente a agradecer no ano que vem.

Maria João Machado

.